Do resto ao Rebento
Jean-Paul Gilson

Minha exposição necessita de uma fala prévia. É uma reflexão da qual fiz um texto. Eu lhes dispenso de um modo de tradução que precisa de uma apresentação especial mas que encontrarão nas atas do congresso.
A maior condensação dessas propostas diz respeito a um fato de experiência indiscutível : a cura psicanalítica enoda uma existência humana ao modo do nome do Pai.

Observação.

Sabe-se desde Freud que o pai do qual falamos é inconsciente e que a sua localização, primeiro na estrutura do desejo e em seguida, a sua função na gestão do gozo, têm os nomes do mito do Édipo e do mito da horda primitiva. Nada a ver com a imagem do pai que paira conscientemente no discurso comum e na vida de todos os dias.
E, no entanto, pode-se encontrar em Lacan, em uma ou outra parte de seu seminário, propostas articuladas sobre as conseqüências visíveis de toda função paterna inconsciente.

Em 4 de janeiro de 1975, Lacan propôs a reflexão seguinte que tenho a intenção de comentar-lhes.

"É preciso que qualquer um possa fazer exceção para que a função de exceção se torne modelo. Não é preciso que a exceção permaneça em qualquer um para constituir-se em modelo, por esse fato. Este é o estado comum : qualquer um atinge a função de exceção que tem o pai, sabe-se com que resultado : o de sua Verwerfung , na maioria dos casos, pela filiação que gera, com o resultado psicótico que denunciei."

A primeira parte da citação justifica o seu lugar no contexto desse congresso : "Trata-se uma criança" já que Lacan nos indica precisamente a lógica a partir da qual uma psicose surge na criança. Eu não disse autismo, ainda que o que vem a seguir pode ser esclarecedor a este propósito. Se eu leio e releio este texto, a exceção inevitavelmente simbólica tem uma ligação especial no valor de intercâmbio sob a forma em que qualquer um pode ocupar a função , sem que necessariamente a dimensão de modelo seja automaticamente adquirida.
A continuação da citação vai nos informar sobre essa exceção e esse modelo, lhe dar consistência, Édípica por exemplo, de modelo depois que qualquer um tenha ocupado este lugar.

Tomemos aqui o modelo como uma metáfora em uso para forçar o acesso ao real. Mais tarde, eu vou lhes propor aí a virada do Modelo (Modèle) ao mot d’elle ( palavra dela ) que equivoca a partir do inconsciente.

Como ocupar o lugar de exceção, aquele do pai por exemplo? É fazendo filhos a uma mulher. O que não quer dizer que isso faça suporte identificatório, isto é, modelo. (exquisit männlich).

N.B. Será que a passagem de exceção a modelo poderá nos informar sobre esta passagem do valor de uso ao valor de intercâmbio?

Agora é preciso prosseguir na seqüência da citação , deixando deliberadamente de lado a questão da Verwerfung que nos afastaria do nosso caminho. Por exemplo, o homem dos lobos e dos primeiros lacan.
Pois estamos aí, ao nível da teoria que chamei de Lacan III; de fato é o 4( avanço topológico de Lacan , depois do estágio do espelho e o esquema L, o Lacan do grafo, o Lacan da superfície, o dos nós e é talvez a única maneira de entender ou de entrar na continuação do texto de Lacan.

"Um pai só tem direito ao respeito, senão ao amor, se o dito amor, o dito respeito for- vocês não vão acreditar em seus próprios ouvidos- perversamente orientado, ou seja, feito de uma mulher objeto a , que causa seu desejo. Mas o que uma mulher a-colhe disso, assim, nada tem a ver com a questão. Aquilo de que ela se ocupa é de uns outros objetos a , que são seus filhos, junto aos quais o pai, no entanto, intervém - excepcionalmente, na melhor das hipóteses- para manter na repressão , no justo mi-dieu, se me permitem, a versão que lhe é própria de sua per-versão (versão de pai) .Per-versão , garantia única de sua função de pai, a qual é a função , a função de sintoma, tal como a escrevi. Para isto basta que ele seja um modelo da função. Eis o que deve ser o pai enquanto só pode ser exceção. Ele só pode ser modelo da função se realizar o seu tipo. Pouco importa que ele tenha sintomas, se acrescentar a estes o da perversão paterna. Isto é, que a causa seja uma mulher que ele tenha adquirido para lhe fazer filhos, e que a esses, quer queira ou não, dispense cuidados paternos".

Eu comento.

Sempre a partir de "para lhe fazer filhos". Trata-se do caso muito particular, quase católico romano onde um homem e uma mulher se encontram , ou mais precisamente, um homem encontra uma mulher para lhe fazer filhos. O que , felizmente, não é sempre o caso mas onde, enquanto bom freudiano, Lacan introduz a idéia da presença sempre real de procriação no ato amoroso.
Freudiano porque Freud sempre sustentou firme o leme libidinal no sentido da constituição de uma pulsão sexual , desprendida de sua forma mórbida e atraída pelo seu fim, sua realização na função de reprodução.

Para comentar este parágrafo, necessito ainda de duas anotações teóricas lacanianas. A primeira é relativa à teoria do ato que ainda está por se construir a partir das indicações que Lacan nos forneceu essencialmente no seu seminário sobre o ato analítico.

Disto, isolo dois tempos.

Aquele onde Lacan aventura-se uma vez no espaço político, ensinando que desde a era trágica, o herói avança sozinho e de antemão é traído e o espaço analítico onde Lacan , desafiando as piedades oblativas nos ensina que desde Freud, o psicanalista é rejeitado - sicut palea- da própria cura. Restos inelutáveis de todo ato, como também a criança pode ser do ato amoroso. Como não ver a partir daí, o que do ato amoroso junta esta dupla questão : a da fidelidade, boa fé, palavra de honra e aquela do objeto de desejo, pequeno a que causa o desejo e , que pela prevalência de seus dois eixos , polariza também o que chamamos hoje de orientação sexual.

Pois é em nome do objeto a, que o homem se enamora daquela que lhe será adquirida, apesar que para ela os filhos estão no lugar (a) quando ele, em um curioso quiasma involutivo , lhes dispensará seus cuidados paternos. Garantia então. Essa operação involutiva permitiria muito simplesmente interrogar o que a ciência e a organização social nos colocam hoje : a clonagem na qual um buscará, em vão, o ramo invertido que toma o parceiro por (a) e... a noção jurídica de autoridade parental compartilhada, desvalorização absoluta da potência paterna, que parece igualar os parceiros frente ao olhar do Outro e do objeto.

Alí onde Lacan designava uma dissimetria essencial das funções paternas e maternas, não sei ao certo o que a de-subjetivação ou a pseudo-paternalização científica produzirá no futuro. Mas o igualitarismo feminista acoplado ao crescimento da ciência já produz efeitos curiosos : recrudescência das fobias e terrores dos meninos, hiperatividade e dificuldades de "focussing" (atenção); certos colegas meus, analistas em Quebec acrescentam as dependências toxicomaníacas.

Angústia como sendo a volta do real no imaginário. Onde encontramos novamente nossa citação de Lacan : àquela que justifica dar ao pai um estatuto excepcional de modelo, isto é de identificação e, porque não de repelir-loucura. Mas ainda melhor como modelo para uma leitura de um real possível para as crianças.

Chego à 2( notação teórica. É aquela planificação (mise à plat) do enodamento borromeano e, eu diria "all-dressed", recheado que preocupa Lacan redobrando-o de uma abertura em Triskell .

Ela nos permite ler essa elevação ao nível de modelo que introduz o plano do real nos cuidados do corpo (imaginário) e o discurso que o acompanha (Simbólico).

A questão desse redobramento do nó borromeu por uma abertura em triskell que fecharia as consistências borromeanas nos leva a pensar a uma espécie de sublimação ou efetuação da estrutura para o sujeito, neurótico ao menos, criança também, cujo o circuito em trevo resistiria muito a se fechar.
A função paterna outrora identificada ao estatuto metafórico, depois ao enodamento borromeano, poderia ser modificada pois poderia equivaler a uma dobradura do nó por ele mesmo no que faz a sua especificidade atuante : inibição, sintoma, angústia frente ao sentido, ao J(ph) e J(A).
É através essa ótica do ultimo Lacan , o de Une bévue,, de RSI, e de Encore, àquele que parece ser ignorado por uma certa internacional lacaniana , que eu proponho ler o advento do infante.

Lacan nos fala de amor e, a seguir, de respeito pela ligação a uma mulher que causa o desejo do homem a um nível que não é simétrico a ela já que per-versamente ( père-versement) orientado.
Equívoco que parece implicar, sem ser articulado, a tomada de um gozo nesse campo como condição de verdade deste ato reallizante.
Voltaremos a isso se a ocasião apresentar-se.

Lacan acrescenta ao modelo da função que a causa seja uma mulher :
- que ele tenha adquirido-se para lhe fazer filhos. É a versão associação freudiana. O pai tem o papel ativo de designar a mulher que será mãe mas não temos certeza se , em contrapartida, ela está de acordo.
- que lhe seja adquirida , tem aí todo o papel subjetivo da adesão amorosa, firme.

Ainda poderíamos entender o "que ele tenha adquirido"(qu’il se soit acquise") sob a forma de um 3(tempo pulsional, caro à M.C.Lasnik : ele a ganhou para sua causa.

Enfim, parece que o "para lhe fazer um filho" dá a essa mulher o estatuto absolutamente necessário da dimensão paterna , voluntariamente ou não. Ela se acha marcada pelo macho . É recíproco, poderíamos dizer.

Exemplo: Uma mulher que não queria tomar algum método contraceptivo, querendo deixar ao homem a responsabilidade de tratá-la, de ser considerada como fêmea ou mãe ou eventual parceira.

Digamos que a aquisição se dá aí no registro da aliança e do intercâmbio simbólico, pouco importa as conseqüências symptomales (sintomachos) da vida de cada um.

Portanto, é só lendo o nó que ele nos permitirá uma referência. O fazer filhos está no registro da vida tendo , por conseqüência, uma curiosa inibição onde o ato, o agir é legado ao outro. Ele o adquire para lhe fazer filhos como se a mulher fosse passiva e , como Levi-Strauss nos demonstrou, dependente do simbólico, do intercâmbio dos bens , como se sua obra fosse outra.

Até aí, trata-se somente neste cruzamento, de imaginário (Avida) e de simbólico ( Alíngua intercâmbio) (Lalangue échange).
Somente uma reallização segura este trio.

Lacan nos propõe então uma terceira entrada ou melhor, uma vetorização assíntota para enlaçar , até mesmo trêsenlaçar o duo S.I., ele mesmo redobrado de Avida Alíngua (Lavie Lalangue) .

Isto nos leva a três consistências boromeaneas...

Real

Imaginário ---------- planificação (mise à plat) levogiro

Simbólico

... redobradas por um Triskell bloqueando um vazio onde se situa o objeto (a) e delimitando três planos abertos onde Lacan inscreve o ternário freudiano de inibição, de sintoma e de angústia.

Os eixos nomeiam-se de acordo com cada consistência que redobram

- o inconsciente de acordo com o simbólico, ele ek-siste a tudo que faz representação (imaginário).
O que da Alíngua ek-siste a todo efeito sobre a idéia, o imaginário suposto ao corpo.

- Avida face ao imaginário é consistência daquilo que prolifera como fluxo contínuo ek-sistindo a qualquer delimitação do corpo ( organizado, discursado).

- E, em terceiro lugar, aquele que esperávamos ou não e que é chamado a reallizar como terceiro esta efetuação nodal: o Falo, consistência do real enquanto é elidido. Significante do Outro enquanto vai entrar no intercâmbio da sexuação , significante que ek-siste no simbólico e no imaginário real enquanto falta, único jeito de designá-lo necessário.

O terceiro faria real , fazer real (fair réel) mas também ( ferrer elle) "ferrar ela" daquilo que o pai , excepção que só faz modelo ( mot d’elle) porque sua mulher lhe é adquirida na procriação. Curiosos restos católicos romanos .

Entendam que está aí em jogo para os vivasseres ( vivêtres) e os falasseres ( parlêtres), um terceiro sexo ( Lacan já não o teria postulado no final de sua vida ? ) ocupando todo o espaço do falo, objeto que está no limite do objeto , tanto imaginário quanto simbólico, e cujo a função seria realizadora, efetiva pelo desvio da figura paterna.

Em todo caso, isto está no mito freudiano sob uma planificação (mise à plat) e a respeito da qual Lacan se interroga. Falta dizer que se ao falar que ela lhe é adquirida ( ou que ele a tenha adquirido) , a mulher escolhe, pode-se vê-lo no esquema dado, é ganha pela causa do sintoma por onde se realiza o simbólico, pela função fálica.
Escolhendo-o, ela introduz o Falo numa operação que enoda. Em outras palavras, uma criança só tem um pai se a sua mãe, isto é a mulher de um homem, escolhe o modo sintomático que faz o gozo do dito-homem como mot-d’elle ( modelo- palavra dela) e pelo qual a metáfora do real introduz-se para seu filho. Ela é portanto este Falo que ela dá àquele que já o detém , sob a forma sintomática que citei.
Ela se encarrega da iniciação fálica para igualar sígma (Jph) de seu homem, para o qual ela lhe foi adquirida.

Este enodamento que está adiante de tudo o que já se pensou até hoje, só aparece em condições bem precisas de sua planificação (mise á plat), que neutraliza, ou melhor dizer nótraliza uma orientação , uma dissimetria operatória , àquela que Lacan situa no ato que enoda, ainda chamada de enunciação e que se iguala para nosso propósito à patronímia.
Pois hoje, toda a questão é saber o papel do pai nesta função terceira sempre em ação ou se o trabalho, obra dessa planificação realizadora, pode ser ocupado por qualquer um.

Por exemplo se o que está efetivamente em jogo no gozo fálico do homem, e portanto na sua castração, na sua subjetividade revelada, é essencialmente o dom do Falo concedido pela mulher e que ela transmitirá sob a forma reallisante a seu filho.

Perguntávamo-nos o que era uma criança.

O que é sinão este resto do ato amoroso, - Lacan fala deste terceiro-lugar povoado de Falo como l’âme-à-tiers ( a matéria ) no seu seminário l’Une bévue, por onde o amor nos vem do terceiro para a passagem do não-ser ao ser, do nada à significação, para reallizar no imaginário do corpo, o falo simbólico dos pais.

Um resto que talvez, como em qualquer criação, não o seria mais ?

Do resto ao rebento ?

Congresso Internacional da Psicanálise
e suas conexões. Rio de Janeiro.

22 de agosto de 1998.
Jean-Paul Gilson.

Tradução : Grace Lagnado